quinta-feira, 3 de março de 2016

Vou ou vamos?

            Eu devia ter uns onze anos, e estava em um ônibus lotado, com a minha mãe ao meu lado esquerdo. Eis que sobe, num determinado ponto do trajeto, um senhor. Ele paga a sua passagem, atravessa a catraca e para bem perto de mim, ao meu lado direito. Ele ficou bem próximo, e eu, criança, pensei "é, isso aqui tá lotado mesmo". Não vi aquele homem me fuzilando com os olhos. Não vi aquele homem suando mais do que deveria suar. Não vi aquele homem se mexendo mais do que o movimento do transporte público exigia. Mas a minha mãe viu, e, quando nós duas descemos perto de casa, ela me pegou com força pelo braço e disse: "NUNCA MAIS permita que um homem se aproxime de você daquele jeito. Você não viu o que ele tava fazendo? Se esfregando em você? Você NUNCA MAIS deixe isso acontecer, preste atenção em que está por perto". E eu não tinha visto nada, eu não tinha percebido nada, porque, na minha cabeça, eu era só uma menina de onze anos que estava cansada e queria chegar em casa. 
Infelizmente, anos depois, eu viveria isso quase que diariamente, e só poderia pensar em agradecer a minha mãe pelo aviso de que eu deveria estar sempre atenta.
            Quando eu volto sozinha da faculdade, e passo por aquela rua, e tenho medo, tenho nojo dos homens que me olham como se eu fosse um pedaço de carne, ou daqueles que soltam comentários constrangedores, humilhantes, vergonhosos. Quando eu estou voltando, da faculdade, com o meu namorado, e sei que os tais caras ficam calados em respeito AO MEU NAMORADO, e nunca a mim, porque, para aqueles, a minha dignidade continua corrompida. Quando eu ando na calçada e, se olho para cima, vejo um homem me olhar como um ogro olharia sua janta, e, se olho para baixo, ouço uma cantada barata, feia, suja. Quando eu cortei o cabelo e disseram que eu havia perdido a minha feminilidade, que eu havia ficado menos mulher, que mulher de verdade tem cabelo grande e tem orgulho de ter cabelo grande. Quando eu fico assustada, quando meu coração acelera, quando a tensão me domina a partir do momento em que eu vejo que vou precisar passar por um bando de pessoas desconhecidas, dentre as quais se destaca uma maioria masculina. Quando eu vou à farmácia comprar algo mais que um absorvente íntimo. Quando um atendente de algum estabelecimento tira gracinhas comigo por eu ser mulher, pergunta se eu tenho namorado ou marido e, ao ouvir uma resposta positiva, reage com um "deixe disso, isso lá presta pra alguém" e me solta uma risada irônica, carregada de uma supremacia que vem da máscula experiência. Quando eu vou subir no ônibus e um cidadão resolve que me empurrar com o quadril dele vai me ajudar deveras. Quando o vendedor de fichas do restaurante universitário ri mais do que necessário na hora de me vender um vale para o almoço. Quando um professor, numa carcaça gentil e acolhedora, tenta me convencer, e convencer  um amiga minha, a dar o número do celular para ele. Quando eu digo que desejo ter uma carreira profissional consolidada e variada e, ao mesmo tempo, ser mãe e esposa. Quando a minha amiga de 20 anos não pode chegar em casa depois das 20h, mas o irmão dela, na mesma faixa etária, pode fazer o que quiser. Quando eu tenho medo de usar vestido ou short, calça jeans colada ou blusa decotada, por sentir que estou me expondo demais e que, se alguém me olhar de um jeito torto ou me falar uma barbaridade, a culpa vai ser minha, toda minha. Quando eu tenho medo não só de ser assaltada, mas também de ser sequestrada e estuprada. Quando eu leio relatos de abusos sexuais e choro, choro de raiva e reconhecimento, pois eu também já passei por aquilo. Quando a minha virgindade era vista como prêmio, e a virgindade do meu amigo homem era vista como vergonha. Quando eu vou a um show com minhas amigas e, por todos os lados, nós somos cercadas por olhares amedrontadores, e de repente nós ficamos muitos assustadas por... Por não ter um homem amigo conosco, como se nossa única tábua de salvação fosse a presença masculina, a força masculina, a hierarquia masculina, porque HOMEM X MULHER é uma luta perdida para a segunda, enquanto HOMEM X HOMEM é uma luta na qual vence o mais forte. Quando eu sei que a minha irmã, hoje aos quatro anos de idade, vai passar por tudo isso, vai sentir tudo isso, e vai ter os mesmos medos que eu tenho. Quando a mulher negra é sexualizada e exposta, enquanto a mulher branca precisa ser puritana, casta e preservada. Quando dizem que escolhemos nossos parceiros pelo tamanho: da conta bancária ou do órgão genital. Quando uma mulher "da igreja" não pode ser extrovertida, não pode sair para festas, não pode consumir bebida alcoólica. Quando a mulher bêbada é vergonhosa, e o homem bêbado é normal. Quando a mulher toma atitude e é oferecida, quando o homem espera a mulher dar um sinal e é um babaca por não ter ido lá, forçar a barra. Quando você, homem, lê isso e sente a sua virilidade ofendida, a sua imagem atacada, a sua sobreposição social ameaçada. Quando você, mulher, lê isso e vê que não é a única, que nós somos várias, que nós somos todas.
            Eu não sei muito, eu não sei quase nada sobre o feminismo. Eu não participo das discussões, eu não me posiciono, não dou minha opinião. Eu me calei, eu assisti, eu assenti com a alma e fiz a plácida por fora. Eu me calei. Eu assisti injustiças nas ruas, eu assisti injustiças em casa, eu assisti injustiças nas mídias, nas redes sociais. E eu me calei. Eu me calei. Aconteceu e acontece comigo, e eu me calei. Eu não tenho estudo, eu não tenho argumentos sobre isso, eu não tinha captado a dimensão disso tudo.
Até hoje. Até agora.
            Não é a minha luta, não é a sua luta, não é a luta das mulheres que odeiam os homens, porque NÃO, eu não odeio os homens, eu não abomino os homens - eu abomino, sim, o que alguns deles fazem, dizem, pensam, acham. Propagam, ensinam. Não é a minha luta, não é a luta dela, é a NOSSA luta, mesmo que você não escolha suas armas, mesmo que você não fale, como eu não falei, é a NOSSA luta. É a luta de todas as meninas de onze anos que estão cansadas e querem chegar em casa. É a luta de todas as mulheres que estão cansadas e querem não ter medo de fazer o caminho de volta para casa.
"Se não nós, quem? Se não hoje, quando?".